“Funes era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das 3:14 (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das 3:15 (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no todas as vezes. Menciona Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os tranquilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da humidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato. Babilônia, Londres e Nova York sufocavam com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu, em seu pobre arrabalde sul-americano. Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo… (…) Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores…” (J. L. Borges. Ficções. || Ed. Globo || Trad. Carlos Nejar. pgs 112-113: Funes, O Memorioso)
Publicado em: 27/01/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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